Imagine viver em um mundo onde os livros se tornaram tão obsoletos que acabaram sendo banidos para sempre?

Esse é o tema da distopia escrita por Fausto Panicacci, “O Silencio dos Livros”. Os livros, nessa realidade, são objetos que não fazem mais a diferença no meio de um mundo cheio de tecnologia – e mais do que isso, as pessoas não conseguem achar graça em ler algo que não vai agradar a elas no final: cada um quer que o livro termine da maneira como quer, e não apenas livros, mas também filmes e todo o tipo de coisa consumida pelos humanos. Em “O Silencio dos Livros”, os únicos livros que PODEM ser lidos e comercializados são aqueles com diversas opções em que o leitor pode escolher como será o final daquela história que ele está acompanhando.

E é aí que conhecemos Alice, uma garotinha que é deixada de lado pelos pais e pela irmã mais nova, que mais se preocupam consigo mesmo e com a tecnologia que os cercam e não entendem porque a garota gosta de seguir o hábito de leitura da avó da menina e muito menos apoiem que ela tenha mesmo algum livro, afinal, ter livros é um crime naquele mundo. E então Alice conhece Santiago, um senhor que se muda para a casa ao lado da dela, que é meio misterioso, mas mais do que isso, é um ótimo contador de histórias.

“- Entendi. Lamento. – Lamenta por quê? O senhor nem me conhece. Por que se importaria com a droga da minha infância?
Bem, pela mesma razão que arriscaste tua vida por mim, um desconhecido.”

Logo Santiago também conhece os pais da menina e passa a fazer parte daquela casa e daquela família, sendo aceito por eles e acabando por unir a família o melhor que pode enquanto passa alguns jantares com eles e ao fim sempre acaba contando uma ou outra história das tantas que ele conhece. Um dia Santiago perde um caderninho que sempre carrega com ele e que está escrito na capa “Hilário Pena”. Claro que, curiosa como é, a pequena Alice fica tentada a ler aquilo ali, mas resolve que não seria justo com o novo amigo bisbilhotar as coisas dele assim, ela resolve simplesmente devolver ao homem, mas o questionamento fica: quem é Hilário Pena?

Nisso, voltando no tempo, anos antes da proibição dos livros nós conhecemos Hilário Pena, bem na época em que o mundo está começando a mudar com cientistas acreditando que conseguem descobrir que pessoa será uma criminosa usando testes que mostram se as pessoas teriam aquele gene da violência e se ele seria acordado algum dia. Hilário acaba metido em uma confusão em que um homem é morto e mesmo apesar dele gritar aos quatro cantos que não, ele não teve nada a ver com aquilo, não foi ele quem cometeu esse crime, é levado para a cadeia e testado e para a surpresa de todos, Hilário não tem o gene de violência, então que tipo de trama estaria em torno disso e como tudo isso estaria acontecendo com o jovem?

“Embora à época pouquíssimas pessoas dessem importância aos livros, a ameaça de proibi-los rendeu forte resistência, e em defesa do direito de ler foram organizadas passeatas – “quando se tenta arrancar raízes da terra, terra e raízes resistem”, ilustrou o português.”

Nós passamos vários anos acompanhando Hilário na prisão, tentando desvendar junto com ele os detalhes do que aconteceu naquela fatídica noite e também acabamos sendo apresentado a um novo personagem, um homem que também vai preso, vários anos depois de Hilário e simplesmente porque ele fazia contrabando de livros, agora já proibidos de serem distribuídos por aí e conforme as páginas vão passando, os questionamentos apenas aumentam:

Quem é Hilário? Qual a ligação dele com Santiago? Porque ele foi preso, se ele não tem o gene, então como ele é o autor de um crime tão brutal? Além disso, ainda temos o lema “festina lente” (“apressa-te lentamente”) que podemos ver em várias passagens do livro, juntamente com o seu simbolo que é um golfinho com uma ancora. O que isso significa para aquelas pessoas?

As respostas para essas perguntas eu não posso dar porque são spoilers demais, mas o que posso dizer é que vale muito a pena ler esse livro.

“Sabe, alguns dizem que o homem é fruto do meio; outros, que é produto dos genes; talvez haja um pouco disso tudo; mas penso que, fundamentalmente, é fruto dos livros que lê; ou, nestes tristes tempos, dos que não lê.”

Santiago é um personagem tão bom, mesmo com todo o mistério que o cerca e uma pessoa que é verdadeiramente apaixonada por livros como todos nós. Hilário, no tempo que o acompanhamos, vemos ele evoluir de um simples jovem para um homem culto, disposto a aprender sobre as coisas, mesmo sobre literatura, que como ele diz em várias passagens “é algo que não é pra ele”.

Nós podemos nos apaixonar perdidamente por Antonio que é quem cria em Hilário essa vontade de saber mais sobre livros e de aprender a devorar eles e do prazer que todos nós sentimos ao folhear uma história e nos jogar de cabeça nela. Depois de Alice, ele é provavelmente o meu personagem favorito e a parte da história onde ele aparece devia ser apreciada por todo o mundo que também sente esse amor forte para os livros.

“Devemos resistir a tudo que nos desumaniza, e a eliminação das boas e velhas histórias, dos livros, é receita certa para a desumanização.”

E então temos Alice, a doce e pequena Alice, que tudo o que quer é ser uma pessoa mais “sabida” como ela mesma diz, que é completamente negligenciada pela família que devia amar ela e encontra nos braços de um completo estranho o alento que ela precisava para ser quem ela se tornará no futuro – e que eu não posso falar também por motivos de spoiler! Alice é definitivamente minha personagem favorita, não sei se pelo fato de ela ser uma criança e assim como todas as outras crianças ter aquela sinceridade ao falar sobre as coisas, mesmo o que ninguém quer falar, ou por conta da inocência dela de não ter ideia sobre como são as coisas que estão acontecendo na volta dela e, como ela mesma diz, o mundo dos adultos é cheio de mentira e bem complicado. É bom ver isso pelo ponto de vista dela, com a doçura que apenas uma criança poderia ter em um mundo tão ferrado.

“Enquanto o mundo decretava a morte dos livros, tentando silenciá-los, eles resistiam: longe do burburinho quotidiano, do barulho das cidades, das buzinas dos carros, do ruído dos aparelhos, do falatório vazio, o silêncio dos livros não era de morte, como se buscava impor-lhes, mas de música.”

“O Silencio dos Livros” é um livro que, eu me envergonho em assumir, eu provavelmente não tomaria conhecimento dele se não fosse por conta da leitura coletiva, porque não é geralmente o tipo de livro que eu leio, mas eu posso afirmar muito que seria uma leitura maravilhosa que eu estaria perdendo.

A forma como Fausto construiu esse mundo, como tudo é explicado, como por mais doloroso que seja, nos mostra como realmente a tecnologia, apesar de ser uma coisa boa, pode acabar destruindo muitas coisas se não for usada corretamente – assim como todas as grandes invenções realmente, além de mostrar que basta uma escolha errada, uma ação, para transformar toda a nossa realidade e tudo o que nos cerca, é bem próximo da realidade: ainda mais na forma como as coisas tem sido ultimamente.

Tudo em torno de todos os mistérios é resolvido de uma forma muito bem pensada e criada, além de cada página ser uma apaixonante declaração de amor aos livros e a literatura e a tudo que esse universo nos trás e nos ensina. Além do final ser aquele tipo que eu gosto muito: ele é um final bem agridoce, um final feliz que ao mesmo tempo não é tão feliz assim, exatamente como a nossa vida é.

Site: https://idris.com.br/blog/2019/09/24/resenha-sorteio-o-silencio-dos-livros-fausto-panicacci/

Instagram: https://www.instagram.com/idrisbr/